Antehoje amanheci com essa dúvida

Se hoje é o depois-de-amanhã de anteontem
Sendo também o anteontem de depois-de-amanhã
Poderia antehoje ser o anteamanhã de depois-de-anteontem?


Caio Dezorzi, um dia antes do dia seguinte a 21 de outubro de 2021

Capitão Messias

Ganhou a eleição
Elevou-se a presidente
Naturalizou o ódio
Odeia à toda gente
Cairá pela luta
Inexoravelmente
Da sua queda faremos
Amanhecer novamente

Caio Dezorzi
Brasil, 2021, quase 300 mil mortos

Fim de Semana

Finda a semana
Fim de semana
Chegam os dias findos

Morte e renascimento
Parto pós-passamento
Prenho está o domingo

Caio Dezorzi
Livremente inspirado no poema "Segunda-feira" de Alice Fromer.

Cizânia em prosa

Desabou as nádegas nas tábuas do banco como pássaro abatido em voo despenca do céu. Seu corpo despido, extenuado de verter-se em lágrimas, encharcado de um suor gélido, coalhava o ar da cozinha inteira. O ar pesado se derramava por cima de tudo. Não sentia mais temperatura alguma, mas um frio íntimo percorria toda a sua ossatura, como que anunciando a cada vértebra, a cada falange o que estava por vir. Arrastou para si o facão, a machadinha e a garrafa. Espalhou metade do seu corpo sobre o rosto pálido da mesa. Abriu a garrafa e virou um tanto, boca adentro, como se fosse água. Era rum. Com o restante, temperou a porção de corpo exposta. Deixou ali, por uns momentos, o álcool marinando a pele, enquanto cada pensamento seu se fragmentava num labirinto temporal sem saída.

Uma longa cicatriz percorre toda a sua pele, dos pés à cabeça, demarcando fronteira entre dois corpos que vivem num. Dois corpos que foram costurados anos antes. Com a mão direita, empunha a lâmina e faz a primeira incisão sobre a marca dos antigos pontos, feito bisturi de cirurgião. Começa pelo peito. Da sua garganta jorra um retumbo cavo e profundo, ecoando mil grunhidos que suplicam e maldizem em línguas dravídicas mortas. É um grito dos abissos da alma contra a maior dor que já foi inventada - o preço que se paga por separar o que havia sido misturado pela alquimia dos atos de amor insano.

Caio Dezorzi
Segunda metade de 2018

Te amar é ter o peito aberto a fórceps

Te amar é ter o peito aberto a fórceps
Os ossos serrados e o coração exposto
Pulsando em suas mãos que o apertam
Sem qualquer acompanhamento médico
Sem qualquer acompanhamento
Sem qualquer...

E então ter o coração açoitado
Por carrascos robustos cansados de tanto vergastá-lo
Avassalado ao castigo de todos os flagelados da história
Sem qualquer meio de fuga
Sem qualquer meio
Sem qualquer...

E em seguida ter o coração empurrado via crucis abaixo
Hostilizado e apedrejado por uma interminável multidão
Mas reconfortado pelo olhar da mulher que o ama
Apesar de tudo o que o mata aos poucos
Apesar de tudo o que o mata
Apesar de tudo.

Caio Dezorzi, Julho de 2018

Amor além do alcance

Voa livre
Que a tua liberdade é meu prazer
Experimenta-te
Entrega-te
Perde-te
Transforma-te
Reencontra-te
Mas depois, reencontra-me também.
Não por dever. Não deves nada!
Só para que eu não morra dentro de ti.
Mate-me, se quiseres.
Talvez seja necessário.
Mas, imploro-te, ressuscita-me em ti renovada
Ensina-me essa nova versão de ti
Então torna-me o teu mais novo vôo
E nunca deixa de voar
Que a tua liberdade leva o meu amor para além do meu alcance
Amo-te em outros braços
através de outros braços
em todos os braços
Que o teu prazer é também minha liberdade
E reinvento-me para ti...


Caio Dezorzi
Dois mil e dezessete.

Licença Paternidade

Quem vê pensa que eu faço samba e amor até mais tarde
E por isso tenho muito sono de manhã
Mas mesmo com Licença Paternidade
Vou deixando tudo pra amanhã

De madrugada tem gente que só mama
E outros que só querem acordar
O choro que contorna a nossa cama, inflama
O nosso adiado descansar

Junto com a minha companheira
Que tenta ainda manter a mente sã
Troco fraldas e preparo mamadeiras
E tenho muito sono de manhã

Cuido dos bebês até mais tarde
Vou ninando com poemas e canções
Quem já tentou sabe que é uma arte, à parte
Mais difícil que fazer revoluções

Não sei se pelo sono ou por cansaço
Fiz de fralda o meu cobertor de lã
Às seis eu já não sei mais o que faço
E deliro com um café da manhã

Caio Dezorzi
Numa dessas madrugadas logo depois do nascimento da Poema, irmã mais nova da Nina.

Parabéns São Paulo

Nasci aqui, na selva de pedra, concreto, aço, vidro, plástico... que engole tudo e a todos. Minha mãe nasceu aqui. Meus irmãos nasceram aqui. Minha filha nasceu aqui. Muita coisa boa nasceu nesta cidade. Se vocês conhecessem minha mãe, meus irmãos e minha filha, concordariam comigo. Há muita coisa boa na cidade. A poesia pintada nos muros, dita nas ruas. A música, o teatro, a boemia que ainda resta, a melhor pizza do mundo. Muita coisa boa também veio pra cidade. Meu pai veio pra cá com menos de um ano de idade, mas numa época em que ainda podia-se pescar e nadar no Rio Tietê e em todos os córregos que cortam o solo da atual zona mais populosa do hemisfério sul. Meu pai, prestes a completar 65 anos de idade, conta histórias de quando nadava num rio com seus amigos onde hoje é a Avenida Salim Farah Maluf. Não se vê mais o rio. Está submerso no asfalto. Só se vê a "Salim Maluf" - nome de outro pai, pai de outro Maluf, o Paulo. Xará do santo que emprestou o nome à cidade. Muita coisa ruim nasceu nesta santa cidade também. E é maluf demais pra uma cidade só!

Quando você tiver filhos, vai entender!

Um bebê de três meses te faz perder a hora. Oras, nenhum compromisso é mais urgente do que ficar olhando para um bebê de três meses, quando acorda, se espreguiça, sorri, balbucia um ruído qualquer. Principalmente se for sua cria. Aí não há como chegar no horário. Não há como chegar em lugar nenhum. Não há como chegar, porque já se está no objetivo final. Ali, no alto do lugar de onde qualquer um diz: “Agora posso morrer feliz!”.

Um bebê de três meses te faz perder o senso estético. Sim, porque de repente, você começa a ver beleza em baba, ranho, xixi, cocô... qualquer meleca que saia do seu bebê é linda! O cheiro da fralda carregada soa como perfume para o seu olfato. Babada na testa, mijada no colo, jato de cocô direto na sua boca... nada te incomoda! E a mais bela pintura de Van Gogh, fotografia de Sebastião Salgado ou película do Fellini fica sem graça, feia, se para apreciá-la você teve que deixar seu bebê com alguém munido de uma mamadeira. O mundo fica feio longe do seu bebê de três meses.

Boletim de Ocorrência

- Pode relatar o ocorrido?

- Claro! Eu estava bem quando ele passou. Passou por mim. Através de mim. Enquanto ele passava eu pude entender melhor tudo à minha volta. Mas foi muito doloroso. Ele levou minha juventude, minha saúde, minha energia. Ele levou meus amores, meus sonhos, minhas oportunidades! E então levou minha mãe! Ela que sempre disse que ele era bom, que ele tinha ajudado a resolver os problemas mais graves da família, e ele nem se importou! Eu tentei impedi-lo. Fiz de tudo! Gritei até quase perder a voz! Tentei entrar na sua frente, mas eu já disse: Ele passou por mim; Passou através de mim! E levou tudo o que eu tinha. Eu tentei impedi-lo. Fiz de tudo! Tudo o que encontrei joguei no seu caminho! Fiz barricadas! Mas ele passou por tudo, através de tudo e levou tudo o que eu tinha! Nada o detém! Eu tentei agarrá-lo, prendê-lo... finquei estacas nos seus rastros no intento de ao menos retardá-lo, mas ele passou indiferente. E agora levou meus filhos! Eu implorei para ele voltar, mas ele não volta!

- Por favor, acalme-se e seja mais objetivo... Quem é ele?

Recém-renascido

Habituei-me a renascer.
Vira e mexe renasço.
Nos últimos anos renasci tanto,
tanto que me estranha meu eu anterior.

Renasci para as baratas quando perdi o medo delas.
Renasci para as nuvens furando-as num salto de para-quedas.
Renasci para a vida quando a morte levou gente querida.
Renasci para a luta organizada a cada cassetada, a cada novo camarada.
Renasci para o sexo a cada trepada, chupada, a cada carícia roubada.

Despedida

Despedida
Na ida se despe
Volta cuspida

Dispara doida
Se despe doída
Na volta e na ida

O maior vacilo no menor slam do mundo

Veio o "V"
Vai vendo...
Vi vinte vácuos
Vasculhei as vísceras
Vomitei vacilos várias vezes
Vislumbrei véus e vórtices
Vetei a voz
Voltei varrido
Vencido
Velado
Vermelho
Vulto

Caio Dezorzi
Julho de 2012
Quem esteve na Casa das Rosas em São Paulo, na edição de Julho do "Menor Slam do Mundo" e me viu desafiando o campeinho, sorteando a letra "V" e ficando mais de 10 segundos calado diante de todos, vai entender...

Minha receita cotidiana

Todas as manhãs levanto antes do sol
faminto de sono

Misturo passos e pequenos saltos
mexo até dar liga

Bato tudo com um pouco de ônibus
e pitadas de metrô

Cozinho meu caminho até o serviço
em fogo baixo

De onde nascem as ideias?

De onde nascem as ideias?
De qual barriga em gestação?
Seriam frutos de uma árvore?
Ou ovo pós-concepção?

Uma ideia na cabeça
E outra no coração
Uma que desobedeça
E outra que diga não

Meu amor é navegante

Meu amor é baleia-azul
Gigante em extinção
Quase duzentas toneladas
De dor e afeição

De tanto sofrimento
Meu amor é uma jubarte
Seu canto sempre inédito
é ouvido em qualquer parte

O chamavam de Gorila

Se queria comer, pegava
Se não queria, dormia
De todo modo não falava
Se escutava, não entendia

Ali parado só olhava
Se pensava, não sabia
Se queria comer, pegava
Se não queria, dormia

Os olhos também falam

Naquele dia conversamos pessoalmente pela primeira vez, só que sem palavras. Foi uma conversa de olhares.

Caminhando apressado, sempre atrasado, nada me prendia. Toda concentração em acelerar cada passo na esperança de fazer o relógio retroceder. Ninguém me deteria. Até que por entre os anônimos transeuntes que caminhavam no contra-fluxo, avistei você. Olhos nos olhos, mesmo que ainda distantes. Me senti fora do tempo. Não que este tivesse parado, mas era como se não me afetasse mais. Cada passo meu agora parecia me transportar a um novo lugar, de onde podia melhor te ver, me vendo. Nem lembrava mais do vital motivo de minha pressa. Nada podia me libertar do seu olhar. Não sei ao certo, mas creio que foram uns quinze passos de olhos nos olhos até nos cruzarmos. Quinze passos que pareciam quinhentos, porque fora do tempo perdemos a noção de espaço. Mas mesmo tudo parecendo se mover em câmera lenta, e mesmo com um enorme desejo curioso de passear meus olhos por todo o seu corpo, não fui capaz de desviar meus olhos dos seus, por nem um instante sequer.

O palíndromo do Nosso Amor

ANIMAL-LÂMINA

É nosso amor romã-osso, né?

Lâmina ama
ama animal

Ama animal! Ama!
Ama animal-lâmina, ama!

É nosso amor
romã-osso, né?

Caio Dezorzi
Fevereiro de 2012, inspirado no conto de Daniela Giampietro "Nosso Amor", publicado no jogo autoral "Filacantos".

Caem corpos em Pinheirinho

Caem corpos em Pinheirinho!
Viva Naji Nahas!
Caem casas em Pinheirinho!
Viva Naji Nahas!

Cabo Oliveira
Veste o uniforme antes do sol raiar
Não é terça-feira
E nem é dia de alguém trabalhar
Mas recebeu ordens

Leva balas de borracha
Que destino elas terão?
Leva bombas, gás pimenta
Pra que tanta munição?

Ana dos Santos
Tenta dormir apesar da pressão
Ela é só espanto
Quando às seis horas ouve uma explosão
Acode as crianças

Moradores despejados
Que destino eles terão?
Lá vem a tropa de choque
Pra que tanta munição?

Antes de cruzar as avenidas

Amor, por favor,
olhe para todos os lados!
Amor, por favor,
tome bastante água e muito mais cuidado!
Amor, por favor,
antes de cruzar as avenidas
lembra-te que é a minha vida
que carregas no teu peito
e a nossa vida no amanhã do teu ventre.

Nada sei de poesia

Nada sei de poesia.
Não sei ler nem escrever.
Sou analfabeto poético.
O que sei mesmo é prosear!

Mas ocorre, certas vezes,
quando vou parindo a prosa,
de algumas palavras se enversarem.
Se enversam sozinhas, sem mais nem menos!

Quando me dou conta,
da prosa que paria,
eis que se rebela a poesia!
Assim, totalmente à revelia!

Coisas de quem tem medo

Temo desde pequeno
adoecer no sereno
cair e quebrar o braço
dançar e errar o passo

Temo desde criança
se machucaria a dança
se doeria o tapa
se sangraria a napa

Universos Paralelos

Cada um é um Universo.
Com seus astros e estrelas.
Com suas incógnitas e explosões.
Com sua imensidão desconhecida.

Todos vivem com a dança das órbitas...
estelares, atômicas, celulares e sanguíneas.
Todos pensam que podem conhecer a si mesmos
através de lentes de telescópios,
sem a necessidade de estar lá.

Noite adentro

Quero te dormir
Ver-te em sono
Noite adentro

Quero imiscuir
No teu sonho
Vida afora

Caio Dezorzi
2011, numa madrugada insone de outubro

Vias Expressas



Estamos todos dirigindo por vias de alta velocidade, algumas vias mais rápidas, outras mais lentas, porém nem todos sabemos para onde estamos indo.

Há um infinito número de out-doors postos aos dois lados das vias e muitos balões-propaganda por sobre as mesmas, todos com o lixo publicitário de costume.

A grande maioria dos motoristas e passageiros acostumou-se, desde a infância, a olhar para os lados, para os out-doors, causando assim uma espécie de sedimentação no início da coluna vertebral que provoca fortes dores quando se posiciona a cabeça para frente.

O trava-língua do Patrão Jasão e o Empregado José

Seu Zé: Seu Jasão?
Jasão: Vazou o chá...
Seu Zé: Faço um já!
Jasão: Já fez chá?
Seu Zé: Já vou já!
Jasão: Faz um Já!
Seu Zé: "Faça chá! Faça chá!"
Jasão: Faz um Já!
Seu Zé: Faço já!
Jasão: Vai vazar?
Seu Zé: Vazou já!
Jasão: Ah... Vou vazar!
Seu Zé: Já vai já?
Jasão: Já vazei, vá fechar!
Seu Zé: Já vazou?
Jasão: Já me enchi, vá fechar!
Seu Zé: Fecho já!
Jasão: O chá vazou, vai sujar!
Seu Zé: Fecho já e sujo o chá!
Jasão: Vai sujar? Faz favor!
Seu Zé: Limpo já!
Jasão: Vá José!
Seu Zé: Já vou já!

Caio Dezorzi
Escrito em março de 2003
Revisado em outubro de 2011

Fucutucada

Fucutucarei-te toda
Tocarei-te por inteiro
Terei teu gosto, teu cheiro
Tentarei-te totalmente
Fucutuco-te com a mente, sempre!
Fucutuco tua foto até.

Taco-te na cama e
Toco-te em chamas
Fuco meu tuco em ti
Fucutuco-me duro em ti

Fucutuco
Fucutuco
Fucutuco...

Fucutucando-te assim
noite e dia sem ter fim.

Caio Dezorzi
Durante o longo inverno de 2011 em São Paulo, misturando cutucadas no facebook e o significado do verbo "futucar" nos dicionários, nasceu o verbo "fucutucar", quase como uma batucada de samba.

Seu Zé

Há mais de trinta anos, Seu Zé trabalhava como faxineiro em uma escola da periferia da zona sul da cidade de São Paulo.

No início, tinha a vassoura e o esfregão apenas como seus parceiros temporários. Sonhava em ser artista de cinema. Mas, com o passar dos anos, o temporário transformou-se em definitivo e ser artista de cinema já não mais passava de um sonho impossível de se realizar. Foi abatido por forte depressão ao se deparar com tal constatação, como se tudo não tivesse mais sentido. Comer, trabalhar ou até mesmo respirar já não indicava a direção de nada a ser alcançado. Repetia a mesma rotina todos os dias com um profundo mau humor. Era como se cada sala que ele limpava o tornasse mais sujo, pesado de tanta sujeira.

Até que, num certo dia, ao varrer a sala da 7ª série, encontrou um pedaço de papel, um tanto amassado, com algumas palavras, quase que por completo cobertas pela sujeira. “Nem sei porque, (...) espero (...) poder (...) dizer (...) te quero!” Fragmentos de um texto, de uma carta de amor. E Seu Zé começou a remontar em seus pensamentos aquela carta de amor e imaginou o garoto, a garota, a situação, tudo bem nítido como se estivesse assistindo a um filme de cinema. Ficou quase duas horas, parado, apoiando o peso do corpo nas mãos que pairavam sobre a ponta do cabo da vassoura, imaginando.

Abraços

Um abraço nos faz olhar para direções opostas, ao mesmo tempo em que nossos corpos se entrelaçam e nossas cabeças se unem lado a lado, num breve momento paradoxalmente eterno.

Num abraço sentimos o movimento da respiração e as batidas do coração do outro, como se fossem nossas batidas, nosso ar, ao mesmo tempo em que sentimos o outro como outro.

E nessa eterna antítese, ocorre a troca. Num abraço, ficamos com algo do outro e o outro leva algo de nós. Bom ou ruim, é sempre assim.

Caio Dezorzi
Maio de 2001

Há braços

Há braços. Quase todos cruzados.
Há braços trabalhando duro.
Há braços dados, unidos por uma causa.
Há braços medindo forças.
Há braços – e também há pernas e cabeças.
Há braços erguidos.
Há braços cortados e mutilados.
Há braços.
Usemos!

Caio Dezorzi
Maio de 2004

Comunicado

Fui acometido por uma forte dor no peito hoje. Ao chegar ao pronto-socorro fui internado imediatamente. Toda a junta médica disse que o que tenho é incurável: meu coração deixou de cumprir as funções de bombear o sangue por estar sobrecarregado em outra função - amar. É isso. Morri de amor por você hoje. Mas - curioso milagre - sigo vivo, mais que nunca!

Caio Dezorzi
2011, numa tarde de agosto com gosto de saudade

Para os companheiros do campo

Quem não tem terra e só faz vagar
Neste país de tão poucos donos
Com a bandeira da cor de seu sangue
Ergue sua foice e se põe a marchar

O rosto enrugado no tempo
que passa e leva o amor
pela vida dura e bela
como a mão do trabalhador

Cada calo tem sua dor
sem calar o futuro da gente
que insiste em olhar para frente
consciente do próprio valor

E mesmo sempre açoitado
entretido e embriagado
o povo alegre e cansado
se une na mesma canção

Pega a mão do irmão ao lado
Faz dessa terra um só coração
E os milhões de punhos cerrados
Serão parteiros da revolução

Caio Dezorzi
Outubro de 2010

Inspiração Leminskiana

No calor tudo é tambor
No frio, só piu-piu

Caio Dezorzi
2011, numa gélida manhã de maio

Foto sem fim

Quando vi tua foto
olhando pra mim
Sorriso rosado
de um querubim
Quis me fotografar
e ao teu lado ficar
numa foto sem fim

Comboio Cheio de Vazios

Muitos entes se empurravam à hora do fim do trabalho, num dia desses de uma dessas estações do ano, numa plataforma de alguma dessas estações de metrô da grande Nova Sampa, a versão ruiniforme de São Paulo, chamada assim após a proibição - proveniente do fenecimento do Vaticano - do uso dos nomes santos.

Havia mais de dez minutos que a multidão de entes esperava o comboio de vagões, quando este se mostrou no horizonte, chegando abarrotado de mais entes. Os da plataforma empurravam e comprimiam os entes que estavam no interior dos vagões, o que fazia com que o comboio todo baixasse, quase colocando em contato sua base de ímãs com a linha magnética de pólo oposto que repelia os vagões, fazendo-os flutuar.

O comboio saiu da estação a uma velocidade razoável, porém, com sérios riscos de acidente por conta da sobrecarga. E como carga qualquer de um cargueiro comum, entes de todos os tipos, formas e tamanhos, lutavam, amontoados, por alguns milímetros cúbicos de oxigênio. Mais difícil do que encontrar o ar, era expandir o tórax ou abdômen para efetuar a inspiração, pois estes pareciam estar mais comprimidos do que os momentos de repouso entre uma e outra jornada de trabalho.