Nasci aqui, na selva de pedra, concreto, aço, vidro, plástico... que engole tudo e a todos. Minha mãe nasceu aqui. Meus irmãos nasceram aqui. Minha filha nasceu aqui. Muita coisa boa nasceu nesta cidade. Se vocês conhecessem minha mãe, meus irmãos e minha filha, concordariam comigo. Há muita coisa boa na cidade. A poesia pintada nos muros, dita nas ruas. A música, o teatro, a boemia que ainda resta, a melhor pizza do mundo. Muita coisa boa também veio pra cidade. Meu pai veio pra cá com menos de um ano de idade, mas numa época em que ainda podia-se pescar e nadar no Rio Tietê e em todos os córregos que cortam o solo da atual zona mais populosa do hemisfério sul. Meu pai, prestes a completar 65 anos de idade, conta histórias de quando nadava num rio com seus amigos onde hoje é a Avenida Salim Farah Maluf. Não se vê mais o rio. Está submerso no asfalto. Só se vê a "Salim Maluf" - nome de outro pai, pai de outro Maluf, o Paulo. Xará do santo que emprestou o nome à cidade. Muita coisa ruim nasceu nesta santa cidade também. E é maluf demais pra uma cidade só!
O Paulo, que mandou cimentar o rio e colocar o nome do pai dele, já foi governador do estado indicado pelos militares na época da ditadura, e prefeito da cidade. Hoje é deputado. Ele mandou bater em professor numa época em que ainda não era moda. Colocou a Rrrrrrota na rrrrrrrrua. E mandou fazer um incinerador para desaparecer com os mortos da ditadura. A empresa contratada se recusou a fazer tal engenhoca infernal e Maluf mandou jogar tudo numa vala comum, num cemitério de Perus. Apesar de tudo, parece que ainda tem muito paulistano que gosta dele. Dizem que "rouba, mas faz". E rouba mesmo! Muito! Fazer não faz, mas manda fazer. Quem faz mesmo são outros Paulos, Pedros, Joões, Zés e Marias. Os nomes que nunca aparecem naquelas placas de metal que colocam depois que a obra fica pronta.
Disseram que vinha aí um homem novo para um tempo novo. Faz aniversário hoje também – nasceu no dia da cidade! Acabou eleito prefeito. E como vinha do partido que é “dos trabalhadores”, todo mundo que é trabalhador e tem um pouco de consciência de classe, como eu, votou nele. Era isso ou deixar um maluf desses com outro nome qualquer entrar no lugar. Mas o “homem novo” foi abraçar o velho Maluf original, lá no jardim da mansão dele (que, diga-se de passagem, a Interpol não sabe onde fica)! Tá tudo errado mesmo! Homem novo, política velha e São Paulo não pode parar.
A turma dos revolucionários, que com orgulho ajudei a formar e faço parte, me colocou de candidato a vereador nas últimas eleições. Nunca esperei por isso. Não cogitava. Mas, missão dada é missão cumprida! Tudo pela revolução! Campanha bonita, porque falava dos problemas reais do povo e, mais do que isso, apontava soluções que nenhuma outra campanha de nenhum candidato a vereador ou mesmo prefeito colocava. Por exemplo, falávamos de Tarifa Zero quando ainda não era moda. Coisa de marxista mesmo!
Mesmo com quase nada de grana, disputando contra campanhas milionárias de candidatos patrocinados por grandes empresários, recebemos votos de mais de três mil concidadãos e concidadãs. É bastante, mas insuficiente para eleger um vereador numa cidade dessa gigantude e dinheirama toda. Três mil e dez votos, para ser mais exato. Três mil e dez pessoas que nem conheço, ou pelo menos a maior parte. Cidade gigante é assim: conhece-se muita gente e não se conhece ninguém. Pra encontrar um amigo tem que ser com hora marcada, agendada com um mês de antecedência. Tudo é urgente!
Aí, Haddad, o homem novo, mancomunado com o velho Maluf, de mãos dadas com um maluf tucano que se chama Alckmin, fez cumprir o orçamento do ex-prefeito Kassab – com esses nomes todos, quem não conhece deve pensar que em São Paulo só tem descendente de árabe e turco! – e, insensível à urgência da cidade, mas muito sensibilizado com a necessidade das milionárias empresas privadas de ônibus, decretou um aumento de vinte centavos na tarifa dos coletivos.
E então, aqueles que por muito tempo aceitaram professor espancado, rio asfaltado, cadáver desaparecido, bala perdida encontrada na nuca de menino da periferia e “otras cositas más” decidiram dizer basta e não aceitaram mais vinte centavos. A polícia cumpriu seu dever de defensora da ordem e da propriedade privada, e baixou o cacete com o aval de Haddad, Maluf, Alckmin, Kassab, Rousseff e outros nomes impronunciáveis. Isso incendiou a cidade e incendiou o Brasil. E então entramos em um novo período histórico. Ironicamente, o dito “homem novo para um tempo novo”, que fez de tudo para impedir o tempo novo, provocou sua inauguração com uma velha política, e abraçando os velhos políticos. Palmas para Haddad! Clap, clap, clap!
Agora vivemos um tempo novo. Um novo povo não aceitará mais vinte centavos, balas perdidas, professores apanhando. Também não aceitará mais gás lacrimogênio, bala de borracha, spray de pimenta, canhões d’água! Não! Basta! E como dizia uma outrora boa banda paulistana: “Polícia para quem precisa! Polícia para quem precisa de polícia!” Nós não precisamos! Estamos fartos dela!
Se é o meio material que determina a consciência, queiramos ou não, todos que vivemos aqui somos em certa medida, filhos de São Paulo. Com todas as suas coisas boas e ruins. Parabéns São Paulo! Mas saiba que teus filhos não fogem à luta. E venceremos!
Caio Dezorzi
25 de Janeiro de 2014, por ocasião do 460º aniversário da cidade de São Paulo.
25 de Janeiro de 2014, por ocasião do 460º aniversário da cidade de São Paulo.