Há mais de trinta anos, Seu Zé trabalhava como faxineiro em uma escola da periferia da zona sul da cidade de São Paulo.
No início, tinha a vassoura e o esfregão apenas como seus parceiros temporários. Sonhava em ser artista de cinema. Mas, com o passar dos anos, o temporário transformou-se em definitivo e ser artista de cinema já não mais passava de um sonho impossível de se realizar. Foi abatido por forte depressão ao se deparar com tal constatação, como se tudo não tivesse mais sentido. Comer, trabalhar ou até mesmo respirar já não indicava a direção de nada a ser alcançado. Repetia a mesma rotina todos os dias com um profundo mau humor. Era como se cada sala que ele limpava o tornasse mais sujo, pesado de tanta sujeira.
Até que, num certo dia, ao varrer a sala da 7ª série, encontrou um pedaço de papel, um tanto amassado, com algumas palavras, quase que por completo cobertas pela sujeira. “Nem sei porque, (...) espero (...) poder (...) dizer (...) te quero!” Fragmentos de um texto, de uma carta de amor. E Seu Zé começou a remontar em seus pensamentos aquela carta de amor e imaginou o garoto, a garota, a situação, tudo bem nítido como se estivesse assistindo a um filme de cinema. Ficou quase duas horas, parado, apoiando o peso do corpo nas mãos que pairavam sobre a ponta do cabo da vassoura, imaginando.
No fim do dia levou uma baita bronca do encarregado, mas estava feliz sem saber por quê. Como se tivesse descoberto algo novo. De repente via possibilidades de histórias em tudo. Como se tudo à sua volta estivesse repleto dos filmes nos quais ele tanto sonhava em trabalhar. Deste dia em diante, seu desejo de ser artista de cinema foi suprido pelas histórias que tirava do lixo das salas de aula que varria.
Num dia um pedaço de desenho lhe contava uma história: “Três camelos cruzam o deserto quando uma tempestade de areia e...”. Noutro dia, uma ponta de cigarro: “O torturador apaga o cigarro na testa de João Abóbora e este resiste sem dizer onde se encontra a...”. Certa vez, um pedaço de borracha e uma tampinha de caneta: “O suprimento de borracha está acabando e as canetas continuam lançando suas tampas! Estamos perdidos!...”.
Ao longo dos anos seguintes, muitos encarregados passaram pela escola, mas Seu Zé soube driblar a fiscalização e arrumou tempo para as histórias da sujeira entre uma e outra faxina.
Até que substituíram lápis, caneta, papel e borracha por computadores portáteis e Seu Zé deixou de ser útil ao Estado. Aposentado, hoje confunde as rugas de seu rosto com as sarjetas da cidade e nelas encontra tantas histórias que mesmo se pudesse viver todos os anos passados de novo, não teria tempo de contá-las todas.
Caio Dezorzi
Escrito em novembro de 2002
Revisado em setembro de 2011