Desabou as nádegas nas tábuas do banco como pássaro abatido em voo despenca do céu. Seu corpo despido, extenuado de verter-se em lágrimas, encharcado de um suor gélido, coalhava o ar da cozinha inteira. O ar pesado se derramava por cima de tudo. Não sentia mais temperatura alguma, mas um frio íntimo percorria toda a sua ossatura, como que anunciando a cada vértebra, a cada falange o que estava por vir. Arrastou para si o facão, a machadinha e a garrafa. Espalhou metade do seu corpo sobre o rosto pálido da mesa. Abriu a garrafa e virou um tanto, boca adentro, como se fosse água. Era rum. Com o restante, temperou a porção de corpo exposta. Deixou ali, por uns momentos, o álcool marinando a pele, enquanto cada pensamento seu se fragmentava num labirinto temporal sem saída.
Uma longa cicatriz percorre toda a sua pele, dos pés à cabeça, demarcando fronteira entre dois corpos que vivem num. Dois corpos que foram costurados anos antes. Com a mão direita, empunha a lâmina e faz a primeira incisão sobre a marca dos antigos pontos, feito bisturi de cirurgião. Começa pelo peito. Da sua garganta jorra um retumbo cavo e profundo, ecoando mil grunhidos que suplicam e maldizem em línguas dravídicas mortas. É um grito dos abissos da alma contra a maior dor que já foi inventada - o preço que se paga por separar o que havia sido misturado pela alquimia dos atos de amor insano.
Caio Dezorzi
Segunda metade de 2018