Muitos entes se empurravam à hora do fim do trabalho, num dia desses de uma dessas estações do ano, numa plataforma de alguma dessas estações de metrô da grande Nova Sampa, a versão ruiniforme de São Paulo, chamada assim após a proibição - proveniente do fenecimento do Vaticano - do uso dos nomes santos.
Havia mais de dez minutos que a multidão de entes esperava o comboio de vagões, quando este se mostrou no horizonte, chegando abarrotado de mais entes. Os da plataforma empurravam e comprimiam os entes que estavam no interior dos vagões, o que fazia com que o comboio todo baixasse, quase colocando em contato sua base de ímãs com a linha magnética de pólo oposto que repelia os vagões, fazendo-os flutuar.
O comboio saiu da estação a uma velocidade razoável, porém, com sérios riscos de acidente por conta da sobrecarga. E como carga qualquer de um cargueiro comum, entes de todos os tipos, formas e tamanhos, lutavam, amontoados, por alguns milímetros cúbicos de oxigênio. Mais difícil do que encontrar o ar, era expandir o tórax ou abdômen para efetuar a inspiração, pois estes pareciam estar mais comprimidos do que os momentos de repouso entre uma e outra jornada de trabalho.
O ente de número 99.110.920-01, cujo nome era irrelevante, tentava melhor se acomodar entre um ente saparrão e um outro muito surrão, ao mesmo tempo em que tinha a impressão de que seu estômago já lhe comia uma porção do próprio fígado, tamanha era a fome que sentia. Para tentar se distrair, começou a cantarolar alguns versos que tinha acabado de criar: “A fome me devora, de dentro pra fora!”. O que não serviu para distração e ainda provocou certa espécie de aversão ou incômodo aos entes à sua volta que também estavam demasiadamente famintos.
Aliás, todos os entes presentes no interior dos vagões estavam a ponto de morrer de fome. O ente menos abatido havia feito sua última refeição há mais de trinta horas. Todos os entes de estômagos vazios. Todos os entes com uma lacuna a ser preenchida no interior de seus corpos. Se pudéssemos ver através deles, veríamos muitas lacunas e grande escassez de alimentos em processo de digestão.
Um ente muito idoso, com mais de trinta e cinco anos, com a pele demasiadamente deteriorada pela freqüente exposição às chuvas ácidas e com um olhar de quem já havia morrido há um bom tempo, disse ao jovem ente que cantarolava aqueles versos relacionados à fome:
- Não é preciso ter muito intelecto para notar que a fome reside em todos os corpos. Há alguns que não chegam a fazer nem mesmo as três refeições semanais básicas! É preciso fazer alguma coisa! Você que é jovem, precisa pensar em alguma coisa!
Mas, pensar em alguma coisa de estômago vazio não era tão simples assim. Quando não comer se tornou hábito, as possibilidades de pensar, criar ou até mesmo sentir qualquer coisa começaram a entrar em processo de extinção. Os corpos dos entes não careciam apenas de alimento digestível, mas de espírito, vontade e alimento cultural. Estavam vazios por inteiro. Eram apenas cascas de entes, coberturas superficiais.
As mortes diárias causadas pela fome já ultrapassavam a casa dos vinte mil e, ainda assim, todos agiam como se nada estivesse acontecendo. Como se todas as coisas estivessem andando nos trilhos. E como se tivesse que ser assim, tudo nos trilhos!
Os trilhos haviam sido impostos aos entes, que, ausentes de si mesmos, entravam nos comboios, enchendo-os com seus corpos vazios e ignorando todos os caminhos que se estendiam fora dos trilhos. Caminhos que os levariam a outros lugares, a alternativas. Mas estavam cegos para estas maravilhosas trilhas que um dia habitaram o pensamento da espécie e, agora, só seguiam os trilhos que os levavam ao mesmo lugar sempre. Ao imutável cotidiano!
Caio Dezorzi
início de novembro de 2002
início de novembro de 2002